O Rio Grande do Sul é um estado polarizado. Todo mundo sabe disso. Tu já deixas o berço com a missão de escolher entre o azul ou o vermelho e, a partir de então, achar que o mundo gira em torno de dois times. Há quem ouse desafiar essa lógica e sair às ruas desviando de olhares curiosos, trajando mantos verdes, grenás, amarelos, rubronegros. Há, ainda, os que vão além. Gostam de dar uma de guri travesso. Vez e outra tomam uma tunda, mas quando estão decididos a fazer estragos, não há quem segure. Em um passado recente, a melhor representação desse espírito vem da Serra, é jaconera e honra as cores do Juventude. A touca, dessa vez, não foi pra cima de Inter ou Grêmio, mas sim contra o todo-poderoso São Paulo.



Por mais fundo que seja o poço que o Ju inventou de adentrar, há um sentimento que permeia o Alfredo Jaconi: o de ser grande, de não se contentar em aparecer na mídia só quando faz uma gracinha e outra. O crescimento que veio com a Parmalat nos anos 90 não quedou por aí. Foi fundamental para a conquista da Copa do Brasil, é verdade, mas foi sucedido por anos na elite do futebol brasileiro e por estripulias que fazem o Juventude ser lembrado não só no Rio Grande do Sul até hoje. Em solo gaúcho, então, jaconeros nunca tiveram pudor em fazer frente à dupla Grenal.
Mas, quanto maior o salto, maior o tombo. A montanha-russa da papada chegou a sua maior altitude e, a partir de então, entrou numa íngreme descida. De série em série, o Juventude foi caindo. Quando não tinha mais para onde cair, inventaram a Série D. Três anos no purgatório serviram para o time mudar completamente de realidade. Morumbi, Mineirão e Maracanã foram substituídos por SESI, Albino Turbay, Augusto Bauer e outras tantas canchas perdidas, mas não menos geniais, pelo Brasil – em especial, pelo Sul. O respeito – à época ainda restava algum – começou a ser perdido de vez por obra de Fernandão, Índio, Clemer e cia.
A sina do Ju, porém, é a de ser grande. O acesso para a C veio. O travesso periquito deu uma folga para os colorados e passou a focar nos tricolores, outrora compadres. Aliado a tudo isso, uma classificação às oitavas da Copa do Brasil de bandeja. No caminho, times de diferentes patamares foram deixados para trás, de forma invicta: Tocantinópolis, Coritiba e Paysandu. Até o sorteio colocar um tal de tricampeão mundial no caminho jaconero. No Morumbi, a boa fase dos visitantes – já que há pouco havia falado em tombo, a única derrota do Ju nos últimos 16 jogos foi para a Tombense, na mineira Tombos -, aliada às turbulências pelas quais o São Paulo vem passando, rendeu uma épica vitória por 2 a 1.
No quase um mês entre o jogo de ida e a decisão em Caxias, o Ju alcançou uma emocionante vaga às quartas da Série C, a um passo do tão sonhado acesso à B. Quando tudo dava a crer que o Juventude ficaria mais um ano na C, eis que a equipe chega ao quarto lugar do grupo sulista e se coloca no caminho do Fortaleza. Até a decisão da vaga na B nacional muita coisa rolaria, incluindo o confronto contra os paulistas, a cereja do bolo desse ótimo momento. Com todo o clima de festa, na quinta-feira, todos os caminhos levavam ao Jaconi – inclusive o d’O Cancheiro. O Ju podia até sair derrotado por 1 a 0 que daria mais um passo importante em sua história.
Foi além. Demonstrou que o interior respira e, de uma forma muito mais digna que a própria dupla Grenal, alcançou a classificação. Roberson, depois de ter feito os dois tentos juventudistas em São Paulo, queria mais e meteu uma no pé da trave logo no começo, demonstrando que os locais não se acovardariam na defesa. Aos poucos e ao natural, o Tricolor passou a ter o controle da partida, mas não encontrou o caminho do gol. Caminho destrinchado por Roberson – sempre ele-, mas em condição totalmente irregular.
O gol de Rodrigo Caio no segundo tempo, igualmente irregular, não desmotivou a papada. Pelo contrário. A torcida atrás do gol de Elias passou a cantar ainda mais alto e apoiar o goleiro, de ótima atuação até então. Os minutos foram passando e o jogo cada vez mais concentrado nas redondezas da área juventudista. Só que ser grande, ainda mais para um time do interior, é trabalhoso e requer comprar briga contra tudo e contra todos. Além do gol, a arbitragem não dava sossego para a defesa local, sempre invertendo faltas perto da área. Chegou ao cúmulo de usar uma artimanha muito comum quando se trata da dupla da Capital: os acréscimos “até empatar” – ou, no caso, até fazer o gol da classificação.
Nada que tirasse o brilho verde daquela noite. O apito final de Ricardo Marques Ribeiro irrompeu a festa no Jaconi. Aquele sentimento de dever cumprido foi além. A partir de então, o que viesse era lucro. Ainda que o foco fosse a partida do próximo dia 3, contra o Fortaleza, jaconeros curtiram aquele noite como única, como a prova cabal de que o inferno que o Juventude vem passando nos últimos anos está cada vez mais próximo de se acabar.
Pode ser que o Juventude não venha a alcançar o acesso, até porque o favoritismo é todo da equipe cearense – assim como era do São Paulo nas oitavas, do Grêmio nas semis do Gauchão. Mesmo a Copa do Brasil, que já tem suas quartas-de-final na próxima quarta, contra o Atlético Mineiro, parece distante. Fato é que, aos poucos, o interior vai reencontrando o caminho do orgulho e provando que não precisa necessariamente trajar-se de azul ou vermelho para provar aos quatro cantos que o futebol gaúcho é forte.
Sequência de retratos da inesquecível noite no Jaconi:


